INDO PARA O TRABALHO
Pelas manhãs, pelos pontos, pela luz que irradia do sol nascente, às vezes pela garoa fria que corta a pele intermitente. A rua vista da janela do ônibus, da janela dos meus olhos límpidos e parcos. Já tão cansados de olhar. O mundo que se vê nos olhos da pessoa, da moça no assento ao lado que olha absorta a tela de rostos coloridos no instagram. Os raios do sol que se apagam pela janela baça do corredor de calçadas marcadas por tantas pegadas já esquecidas. Os perigos, o adormecimento dos sentidos, a não capacidade dos ouvidos embotados pelos fones que gritam uma realidade qualquer sob medida.
            A solidão ausente do que foi perdido, o distanciamento do que foi vivido confere uma atmosfera irreal à memória. Na janela embaçada pelas respirações matutinas eu passo por mim, por você, por todos que ainda caminham inexpressivamente, não há WhatsApp que configure tamanha dor. Minha janela passa pelo rapaz que não vê o mundo, que não sente o mundo. Ele está ouvindo sua tristeza de garoto urbano em um fone de trinta e cinco reais, da janela dos meus olhos eu aceno imperceptivelmente para o meu reflexo em seus olhos que são um abismo profundo de urbanidades.
            A manhã se arrasta com um “que” de promessa não cumprida e as pessoas são as mesmas, os pontos são os mesmos, as ruas... as árvores...até a gota de orvalho que escorrega pelo vidro é a mesma de sempre, o trajeto é o mesmo, a música e o perfume de pouca qualidade são os mesmos. Eu escrevo mentalmente essa crônica cotidiana e as minhas mal traçadas linhas se enrolam nos fios de alta tensão, se perdem em espirais pelo céu frio dessa gloriosa manhã até riscarem a vastidão da cidade sombria e triste, mesmo em meio a tanta promessa. Uma melancolia toma conta de tudo, das coisas que são antigas, de mim, no semblante corriqueiro do motorista uma máscara de indiferença dorme. Vivi mil anos, sinto o peso da imortalidade das palavras, essas pessoas sentadas ao meu redor serão um pálido reflexo de si? Ainda observo dessa mesma janela a rua que acorda lentamente e no calçamento projetam-se décadas que se foram transeuntes, animais, saudades e flores, dores e amores. Vislumbro também entre as rachaduras do concreto, pequenos arbustos de possibilidade que arrebentam de vida vencendo a pedra fria, outras cenas se perdem no movimento apressado do coletivo, nesta mesma janela meus óculos refletem uma rua, quem sabe, vazia de mim.


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